Crítica/ Como Cavalgar um
Dragão
Macksen Luiz
Diálogo, mais ou menos ágil, com
o desequilíbrio geracional
Há neste encenação do Teatro
Inominável, em cartaz no Teatro do Planetário, vontade empenhada em realizar
algo que seja, tanto depoimento geracional, quanto tomada de posição em relação
ao teatro. O grupo, muito jovem, demonstra ânsia de dizer, sem muita segurança
de como o fazer. Grupo de amigos se reúne para dividir, física e emocionalmente,
o espólio afetivo de amiga que se suicidou. O encontro, forma de relacionar as
lembranças e as repercussões desta morte sobre cada um, também serve para
acentuar as contradições da amizade e os efeitos da perda nos sobreviventes. O
processo de construção da montagem fica por demais visível por suas hesitações
e fraquezas, nas quais a dramaturgia se perde no tom literariamente
convencional dos monólogos e, com maior domínio em momentos dos, quase sempre,
ágeis diálogos. O autor Diogo Liberano, em processo colaborativo com a diretora
Flávia Neves e o elenco, perde a mão, distribuindo as cenas com desequilibrada
intensidade – como na cena do telefonema do marido de uma das personagens – e
descompassado ritmo. Por maior que seja a sinceridade que o grupo imponha à
cena, falta amadurecimento na elaboração textual e traços mais fortes na
montagem.
Crítica/ A AMIZADE E O
SUICÍDIO DA ALEGRIA
João Cícero Bezerra
A ficção da peça Como cavalgar um
dragão, dirigida por Diogo Liberano e Flávia Naves, parte da necessidade de um
grupo de cinco jovens em entender o suicídio da amiga Letícia. Tal entendimento
solicita, ao mesmo tempo, uma partilha psicológica e afetiva deles. Psicológica
porque se entendem por meio do passado de convívio com a amiga, e afetiva
porque se afetam diante desta falta. A vontade de compreensão do episódio se
manifesta numa disputa pela herança da jovem, como pelo seu All Star e por
outros pertences. Mas o que na verdade se herda são as coisas na medida em que
elas se encaminham para o questionamento sobre a imponderabilidade da morte de
Letícia.
Em um dado momento, o encontro
transforma-se num acerto de contas, em que cada um expressa características de
sua relação com a morta, revelando, assim, aspectos e detalhes do último
contato com a suicida. O conflito da peça gira delicadamente em torno disso.
Mas há o cuidado de mostrar os contrastes de caráter de cada um dos amigos da
falecida. Porém, o cuidado em apresentar estes contrastes excede-se por exibir
um esforço (principalmente do figurino) de marcar muito o contorno que
diferencia cada um deles. Andréia (Dominique Arantes) é a jovem perua, vestida
com blusa de oncinha e num salto alto, usado com pouca habilidade (que não
parece proposital, e sim descuido da composição da atriz), sendo também a
namorada de Odilon (Vitor Peres), jovem romântico, ponderado e apaixonado por
Andréia, vestindo-se num visual mais alternativo de cores pastéis, enquanto
Cecília (Nina Balbi), jovem meiga e um pouco infantil, usa uma meia-calça azul
bem saturada, compondo uma imagem adocicada, contrastando-se com Rita (Marilia
Misalidis) que está com uma saia longa, formando um visual austero e
envelhecido, e, por último, há o jovem Inácio (Fred Araújo), o amigo
homossexual, de roupa ajustada, sem grande desacordo com o traje de Odilon,
apesar de ser bem diferente desse por conta de seu temperamento explosivo
(característica construída pelo ator com pouca sutileza, muito exacerbada por
seus gritos em cena). A delicadeza do tema da peça, a finura das metáforas
usadas nela, a começar pelo título, solicitaria, a nosso entender, a criação de
contrastes feitos com detalhamentos mais suaves entre as figuras e não por meio
de um contorno tão expressivo. Será que há tanta diferença entre uma jovem de
24 anos, Cecília, e uma de 31 anos, Rita? Não é o que se observa no mundo
atual. E se tais diferenças existem, poderiam ser mostradas mais internamente
sem serem tão externalizadas, a ponto de parecer um estereótipo naturalista. A
acentuação dessas diferenças retira de Como cavalgar o dragão certa finura no
alinhamento das personagens, fazendo com que esses fiquem soltos num quadro
(contexto afetivo próprio da ação da peça), uma vez que a construção das
figuras diverge do tratamento (suave) dado às questões mais filosóficas
trazidas pela obra de Liberano e Naves.
Parece que o melhor caminho a
seguir para a interpretação dessa peça é o de pensá-la como um exercício
sensível de reflexão sobre a amizade e o suicídio da alegria no mundo
contemporâneo. Como um grupo de jovens criados por uma cultura altamente
alienável e consumista entende o suicídio de sua amiga Letícia? Para isso
torna-se necessário ir em direção ao significado do nome dessa personagem, que
vem do latimLaetitia, alegria. O desdobramento desse sentido é uma
possibilidade de ganho para peça, já que esta metáfora está ali, delicadamente,
inscrita no nome da personagem que se suicidou, construindo uma alegoria para o
espetáculo. O que morre com a amiga é uma parte dessa juventude revestida de
alegria, mas de uma alegria altamente alienável, assim como era a existência
daquela amiga que pode ter sido esquecida por eles em vida. Tal ideia se
observa na insistente fala de Inácio, quando este imputa responsabilidade aos
amigos pela morte de Letícia. Mas a alienação sugerida pela peça ultrapassa o
esquecimento da amiga, esse pode, inclusive, ser relativizado, já que os amigos
se defendem das acusações de Inácio. A alienação está já no belíssimo prólogo,
em que Cecília profere uma lista de coisas, objetos materiais, muito
discriminados por marcas, construindo significados, esvaziados pela reificação
da própria listagem. Ali, nota-se a agudeza do texto, sua sensibilidade de
mapear uma geração de consumidores diante do espanto do suicídio, que se não é
político como um suicídio altamente consciente de sua força política, torna-se
político porque está tomado pela esquizofrenia que se tornou o capitalismo
atual, pelo excesso receptivo de jovens aprendizes do consumo, descrentes das
ideologias, mas imersos à prática do consumo autoral. O interessante da
metáfora do suicídio da alegria é que ela está na peça quase de modo
inconsciente, destacada por meio de uma poesia fina, sem didatismo de
explicação vocabular, como um ato falho poético, exigindo atenção e
sensibilidade de quem assiste.
Outro aspecto que subjaz ao tema
da peça refere-se ao sentido de político em Como cavalgar o dragão. Deve-se
acrescentar aí um prefixo, trata-se de uma micropolítica, isto é, de como num
pequeno espaço de coisas (a casa de Letícia e os seus pertences) se constrói
uma partilha entre amigos após uma morte procurada, o suicídio. A morte
encontrada por Letícia e a tentativa de entendimento dos seus amigos acerca de
seu fim não estão amparadas em nenhuma ideologia política. Não parece que
Letícia se suicidou, conscientemente, por conta do aquecimento global ou do
imperialismo norte-americano. Nem tampouco seus amigos percebem em seu gesto um
conteúdo semelhante. É a própria Letícia essa natureza aquecida que explode e
se esvai. Volto à ideia de que ela é a alegria do consumo desenfreado. Não
seria essa alegria alienável a responsável pelo aquecimento da camada de
ozônio? Talvez o seu suicídio só seja explicável por questões químicas e
neurológicas, e não por meio de um conteúdo metafísico-ideológico. Para Giorgio
Agamben, ela é, certamente, vida nua. Letícia está nessa encruzilhada entre a
falta de sentido da linguagem e o corpo como cadáver. Este é o destino dessa
jovem. E ele repercute no estado alienado dos cinco amigos. O que vem à tona é
o suicídio como aproximável à loucura. O conflito da peça se arma seguindo esse
mote, construindo esse nó. Há, sobretudo, a necessidade de lutar e de moralizar
em torno do que não tem sentido. Em Como cavalgar o dragão, segue-se ainda a
necessidade de movimentar o drama. O nome da peça explicita a metáfora do
conflito, da luta. Eis um belo drama contemporâneo, uma peça que não se
pretende pós-dramática, visto que ainda está apoiada a premissas dialógicas, na
busca da decisão e do conflito, inteiramente ligada a uma fábula moral. Mas a
moral que se investiga é a de compreender o convívio de um grupo quando um
membro deste desaparece. Como se numa coleção uma peça sumisse, e, portanto,
fosse necessário, imediatamente, renomear o conjunto a fim de seguir a lógica
de sua existência. Não se trata da moral do senso-comum e nem do bom senso. É uma
investigação filosófica sobre a perda. Como cavalgar um dragão quer chegar à
dimensão ética da linguagem, naquele momento em que a falta desestabiliza o
todo, e surge a necessidade de recriar o sentido, a fim de que o jogo e a vida
continuem em sua significação arriscada.
Deve-se ressaltar que o cenário
nu de Rafael Medeiros contribui para as sutilezas presentes no texto.
Principalmente no que se refere ao aspecto micropolítico ressaltado, pois cria
uma oclusão espacial que é rompida num determinado momento da ação da peça,
ampliando a fragilidade espacial da casa que só existe como espaço ficcional.
No todo do espetáculo, a atuação dos atores se mostrou ansiosa. Dotada de uma
ansiedade que não se justifica e não ilumina a qualidade do texto. Há muita informação
nos figurinos, apesar deles serem cotidianos. Os intérpretes devem trabalhar
mais as pausas e a contracenação com o intuito de mostrar cuidadosamente a
delicadeza do mote ficcional do texto. Vitor Peres, Nina Balbi e Marilia
Misalidis estão mais próximos dessa investigação. As marcas são boas, fazem bom
uso do espaço, criando uma movimentação simples e ao mesmo tempo satisfatória,
pois constroem a atmosfera de reunião de amigos, utilizando-se bem dos planos.
A realização cuidadosa da encenação é de extrema importância, pois é a partir
dela que o conteúdo do texto apresentará a bela e sutil poesia contida em Como
cavalgar o dragão.